segunda-feira, 12 de novembro de 2007

SOBRE MONGES E SOBRE OS DE ALCOBAÇA

Há hoje uma visão romântica da vida monástica que leva a pensar que, dentro dos muros dos conventos, era só pureza, oração, bondade e rectidão. Esquece-se que o conceito moderno de «vocação religiosa» podia não existir. Ia-se para o convento para fugir ao trabalho assalariado, à miséria económica, ao previsto abandono na velhice e às previsões de doenças sem assistência. No «mundo» (na vida secular) não havia protecção social nenhuma contra a pobreza, a doença, a velhice, o desemprego, o abandono familiar, a orfandade, etc. O convento era um reduto de «alta protecção», a todos os níveis. Ainda nos anos 50 e 60 do séc. XX se ia para os conventos para superar as previsões de miséria. Um frade era um privilegiado, «um senhor», um príncipe, face à dureza das condições do meio social que envolvia o convento.
Sobretudo, não esqueçamos que, desde a Idade Média até ao sec. XIX, os conventos também eram o local onde os pais depositavam os filhos/filhas que eles deserdavam, ou 1) porque vigorava o sistema do morgadio (só um filho/filha herdava o património) ou 2) porque, sendo o património escasso, «não chegava para todos». Então, alguns tinham de ir para um dos inúmeros mosteiros (os pais é que decidiam qual deles tinha esse destino, e qual o mosteiro... e não se podia desobedecer aos pais)..Depois havia as filhas aí postas à força para as contrariar nas suas escolhas matrimoniais. Os mosteiros de mulheres eram sobretudo sítios de sequestro das raparigas desobedientes. Isso aparece em toda a literatura do passado
. Pelo efeito destes vários factores, no séc. XVIII 10 % da população portuguesa residia nos conventos. A fuga do convento era punida com prisão, excomunhão e banimento. O frade «egresso» (fugido) tornava-se um vadio anónimo que ia engrossar as quadrilhas de ladrões de estrada. Conclusão: um convento era um sistema de protecção social contra a miséria, a doença e a velhice para uns, um destino inelutável para outros, e uma prisão para a maioria. Também havia muitos delinquentes que ingressavam «nas ordens» para fugir à justiça. (não havia Polícia Judiciária como hoje nem Interpol... ) enquanto os conventos não podiam ser investigados pelas autoridades policiais ou civis).
A partir destas condições sociais, um mosteiro era um refúgio de inúteis, preguiçosos, frustrados, réprobos, com - como é evidente - algumas «almas boas» pelo meio. Não admira que também houvesse traficantes de toda a ordem. A vida no interior não era «pera doce»: os coluios, as tramoias e as manigâncias de uns contra os outros, tanto os havia nas aldeias como nos mosteiros. Um convento podia ser um saco de gatos, um ninho de cobras ou um cesto de lacraus.
Desde os sécs XVII.-XVIII, a vida monástica entrou em decadência acelerada. Os frades já não viviam exclusivamente nos mosteiros. Muitos passavam as noites nas tabernas e no fado. Muitos passavam os dias nas casas particulares, auto-nomeavam-se «educadores ou confessores da mocidade» ou dos ricos, das suas senhoras ou filhas, etc. E, se os da casa que não aceitassem o confessor intruso, eram denunciados à Santa Inquisição como… «luteranos» (facílimo levar alguém à fogueira!). Outros vagueavam pelas ruas das cidades, inclusivamente a provocar os (melhor: as) transeuntes. Ou, ainda, percorriam o País (dum mosteiro a outro) usando as estalagens (sem pagar) ou assaltando as propriedades. Enfim, para não me alongar sobre este sub-mundo de parasitas, proponho a leitura dos «relatos de viagens» dos escritores estrangeiros, nos sécs. XVII e XVIII, publicados pela Biblioteca Nacional («Série: Portugal e os Estrangeiros») no que eles se referem aos frades e ao clero.
Espero que os românticos defensores da pureza monástica me apontem meia dúzia de monges de Alcobaça - só meia dúzia, desde a fundação até ao fecho - que se tenham notado pela sua santidade.. mas a verdadeiramente cristã, incontestada, sem mácula, a do amor ou abnegação ao próximo...

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

HOJE É DIA DE PÃO POR DEUS


(Para falar da solidariedade social)


Hoje podemos ver magotes de crianças com sacas de cozinha na mão a percorrer as ruas, bater às portas, entrar pelos cafés, desinibidas, a pedir «pão por Deus». No passado e na região de Leiria, dizia-se «pedir o santoro» (do latim, «santorum», dos santos - pão dos santos) que era uma merendeira doce que os mais abonados coziam (e alguns ainda cozem) para oferecer neste dia. Uns ofereciam merendeiras; outros, frutos secos, rebuçados, uma pequena moeda...
Trata-se da sobrevivência dum antigo costume rural que tinha a função social de manifestar a solidariedade entre a vizinhança (o pão recebido podia satisfazer uma família durante alguns dias). Os mais abonados manifestavam-se solidários dos mais pobres, e todos passavam por bons vizinhos porque cada um oferecia do que tinha. Com a mudança sociológica dos últimos quarenta anos, o costume foi recuperado pelas crianças. A função social do costume mudou:; já não visa a satisfação das necessidades dos mais pobres. As crianças integraram-no na sua visão da vida e transformaram-no numa forma de lazer: sair de casa, percorrer as povoações, pedir para si, constituir um pecúlio (de moedas ou de bombons...). E passou a ser o «dia das crianças». Aí vão elas a fazer pela vida. Metem tudo o que lhe derem na saca. O que «ganham» é para elas, como se de uma garantia de autonomia se tratasse... Lazer infantil, certo, mas o ambiente continua a ser de solidariedade.
O dia 1 de Novembro podia bem ser consagrado o Dia Português da Solidariedade. Porque é que só vamos atrás dos «dias mundiais» disto e daquilo? «Há tantos ‘dias mundiais’ que já não fazem mossa», ouvi há dias. A solidariedade deve ser em todos os dias, mas o de hoje podia ser o seu dia oficial, simbólico. Como as crianças recuperaram para si o velho costume, elas próprias podiam, neste dia, serem levadas a reflectir no valor social da solidariedade.
A solidariedade social é o grande tema do presente, e com futuro. Também este sofreu uma evolução. Outrora, a partilha chamava-se caridade, assistência, misericórida... um valor religioso. Hoje, a solidariedade é um dever individual e colectivo, inscrito na estrutura do Estado e nos programas dos governos e das organizações supra-nacionais. Grande mudança. Na concepção tradicional, as populações só se sentiam obrigadas à solidariedade para com os seus conterrâneos e desde que estes fossem submissos, virtuosos, ortodoxamente religiosos, retribuidores ou agradecidos. A caridade era uma virtude privada; os estados não tinham essa atribuição. Com a modernidade, a solidariedade compete a todos em favor dos necessitados sem descriminação. No entanto, organizá-la e instituí-la constitui uma atribuição dos poderes públicos Só por estas mudanças, a modernidade - que muitos criticam sob vários aspectos - vale bem a pena.
Em Portugal, onde a modernidade veio tarde e se confunde com, apenas, as tecnologias, a solidariedade social ainda não é um valor tão afirmado como noutros países. No orçamento do estado português, a solidadriedade social já absorve uma boa fatia dos impostos (doença, desemprego, reforma, inserção social, socorros internacionais...). Mas ainda é pouco. Repare-se que os contribuintes se queixam muito (e com razão) do mau destino que é dado aos seus impostos. No entanto, quando gastos nas áreas da solidariedade social, nunca os ouvimos dizer que são mal empregues.
Os políticos e os autarcas deviam pensar nisso. A solidariedade social é a melhor «bandeira» que se pode arvorar em política. Se estivesse nas minhas competências dar-lhes conselhos, dir-lhes-ia que, em vez de gastar os impostos do povo em obras de prestígio e de fachada, ostentatórias, fingidoras de riqueza e com um valor simbólico relativo, fariam «muitos mais amigos» (no seu caso, eleitores), se os dedicassem prioritariamente à solidariedade social que, essa sim, é um valor de futuro, absoluto e universal. Moisés Espírito Santo (sociólogo) in Jornal de Leiria 1/11/2007



sábado, 20 de outubro de 2007

SR. Dr,Sr. Engenheiro, sr. Arquitecto


No mundo, só em Portugal os diplomados pela universidade são tratados por doutor ou engenheiro. Em França Docteur significa médico, em mais parte nenhuma do mundo civilizado as pessoas são tratadas pelos títulos académicos.Este tratamento português é um atavismo cultural e um arcaísmo medieval relacionado com o analfabetismo da massa. Tem relação com o sistema arcaico de classes ele sucede aos títulos de nobreza ou do senhorialismo. Ser Sr. Dr. Ou Sr. Eng. é diferenciar uma casta. É um tipo de ascensão social fictícia, não económica porque não representa um status económico. É um tratamento pré moderno porque na modernidade são o saber e o estatuto económico que distinguem os indivíduos.O tratamento perpetua a ignorância de massa. Pressupõe o desejo de a massa não ascender aos saberes, segrega os que não são “credenciados” ou autorizados no saber, por um lado, e os “credenciados” por outro. Por isso é que Portugal – o único pais onde existem estes tratamentos - é o mais iletrado da Europa, o mais pobre, com mais desnivelamento social e, curiosamente onde há menos licenciados.
Ps. todo o comentário bem disposto e elevado é bem vindo.